Se você acha que para compreender a questão jurídica da Kennedy é necessário ter um mestrado em direito urbanístico, ao final deste texto você vai entender, de maneira descomplicada, por que a sede social e maior patrimônio do Paraná Clube, felizmente, não poderá ser vendida, nem tampouco penhorada.
Friso o termo Clube, pois é este o nome que nos identifica. Aqueles que defendem o fim do social devem entender que não nos chamamos Paraná Futebol Clube e pretender extinguir as atividades sociais do Paraná seria, em última análise, o mesmo que alterar nossa própria identidade.
Busco, neste breve escrito, elucidar a famosa “cláusula de inalienabilidade e impenhorabilidade” que incide sobre o terreno da Kennedy – ponto de partida e de chegada da discussão. Para tanto, cumpre, inicialmente, resgatar um pouco da história da aquisição desse bem. Por motivos didáticos, a enumerarei em etapas.
1. Com o objetivo de fomentar a urbanização em determinadas áreas da cidade, bem como proporcionar bem-estar à população curitibana, por meio de lazer e recreação, em 1949 a Câmara Municipal de Curitiba elabora a Lei n. 210/49 que autoriza a Prefeitura a ceder por 15 anos alguns lotes públicos. Na época, diversos foram os clubes da capital agraciados com a benesse, porém referida lei, especificamente, contemplou os seguintes clubes: Esporte Clube Guaíra, Esporte Clube Água Verde (Pinheiros) e Britânia Esporte Clube (Colorado), sendo certo que a lei fez questão de registrar a finalidade da cessão de tais imóveis “que se destinam à construção de suas praças de esporte”.
2. Em 1958 sobreveio nova lei municipal (L. 1550/58), desta vez, autorizando o executivo a doar o terreno anteriormente cedido ao Esporte Clube Água Verde. E, neste ponto, é de fundamental importância observar que o art. 2º estabelece expressamente: “A escritura de doação deverá ser gravada com as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade”. Assim sendo, com a escritura pública de doação, o Água Verde (agora Paraná Clube) passou a ser o legítimo proprietário do imóvel, dele podendo usar, gozar e fruir, sem, contudo, vendê-lo.
3. Ato contínuo, foi lavrada a respectiva escritura pública de doação, nos estritos termos da lei, o que aperfeiçoou e concretizou a doação, tendo sido, ao depois, transcrita junto ao cartório competente.
Visto esse breve histórico, passarei a abordar alguns aspectos relacionados aos registros públicos. A Lei de Registros Públicos (L. nº 6015/73) data, portanto, de 1973. Antes dela, os cartórios imobiliários mantinham seus registros por data de ocorrência. Assim, qualquer transação imobiliária havida, não constava no respectivo registro do bem (ao que chamamos de matrícula), como ocorre hoje, mas em atos esparsos, registrados em livros organizados de forma cronológica, que são denominados de transcrição.
É claro que este sistema comportava diversas dificuldades, sobretudo aos cartorários que levavam meses para encontrar determinado vínculo entre imóvel e transcrição, máxime sem contar com os recursos de informática hoje disponíveis.
Assim, tais transcrições não constam necessariamente nas matrículas dos bens que são anteriores a 1973, a exemplo do que acontece com a matrícula respeitante à sede da Kennedy. A pergunta que não quer calar, todavia, é como incidiram tantas penhoras sobre a Kennedy se havia a cláusula que blindava o bem dessas constrições? Seria possível que o clube não tivesse defendido isso anteriormente?
Do ponto de vista jurídico, a proteção da vontade do doador é tão séria que o art. 1716 do código civil da época permitia a autorização judicial, para dispensar a cláusula, apenas para pagamento de impostos relativos ao próprio imóvel.
O Código Civil atual, de sua vez, dispõe em seu art. 1911 sobre a cláusula de inalienabilidade, assim estabelecendo, no seu parágrafo único, as condições necessárias para eventual futura alienação:
Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.
Assim, para alienar a sede da Kennedy são necessárias duas condições cumulativas: a primeira é uma autorização judicial que permita a venda do imóvel e a segunda é que os valores recebidos com tal transação sejam revertidos na compra de outros imóveis preservando nestes a mesma finalidade. Nesse sentido, é bom que se esclareça que, ainda que fosse possível obter autorização judicial, o dinheiro não poderia servir para o pagamento de dívidas, como acreditam alguns e esperam os credores.
E o que dizem os tribunais acerca desse imperativo? Não se desconhece o recente posicionamento do STJ defendendo que a cláusula de inalienabilidade perdura enquanto viver o beneficiário da doação, o que, in casu, não é aplicável ao Paraná Clube, já que este jamais acabará, ao contrário do que pregam os melancias por aí. Tampouco se desconhece o entendimento de que é possível a alienação, caso o imóvel seja gravado apenas com a impenhorabilidade e a incomunicabilidade, o que também não se verifica no caso do Paraná Clube, no qual o doador (Município de Curitiba) voluntariamente fez constar de modo expresso os termos “inalienabilidade” e “impenhorabilidade”.
Diante de todo o exposto, é de se bem ver que, ainda que não conste expressamente da Matrícula do Registro da Kennedy os registros referentes às Transcrições da época, elas existem, são públicas e dotadas de validade jurídica. Pretender a alienação de um bem que está gravado de cláusula de inalienabilidade – além de beirar a infantilidade imaginar que o comprador não se acautelará ou que o oficial do cartório não pedirá a baixa dos gravames – demonstra a mais absoluta má-fé e desrespeito aos princípios ideológicos do Paraná Clube, o qual, se, por um lado possui dívidas, ainda tem reputação idônea a preservar. Assim, comemoremos a existência da cláusula que blinda nosso patrimônio, impedindo que ele pereça por dívidas e façamos dela uma possibilidade de angariar recursos e até mesmo bancar o futebol, como já o fez por longos anos.
OBS: Algumas dúvidas podem surgir a partir deste texto. Se você está se perguntando o que aconteceu com o terreno do Britânia, saiba que a cláusula foi transferida em 1994 para os terrenos do Boqueirão à Vila Olímpica, respeitando, assim, a vontade do doador, qual seja a finalidade recreativa.
*Cristiane Fernandes é advogada e professora universitária. Paranista desde 19 de dezembro de 1989, filha de paranista e mãe de paranistas.
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*Nota: O conteúdo postado neste espaço (colunas) é de responsabilidade exclusiva do autor, não necessariamente refletindo a opinião da Paranautas sobre os temas aqui abordados.
Parabens pelo texto esclarecedor, temos sim que saber utilizar as dependencias da Kennedy, com atrativos rentaeis ao clube.