Sobre a Lei nº 13.813/2019, já apelidada pelos paranistas de Lei da Vila. Advirto que este texto, um tanto extenso, tem um pouco de direito tributário e muito de direito administrativo.
Inicio esta crônica jurídica lembrando que teve até político que levou o mérito pelo conseguimento da Medida Provisória nº 852/2018 que deu origem à referida lei. Mas, a verdade é que nem a MP e nem a lei visaram regularizar a posse da nossa querida Vila Capanema.
E, nesse aspecto, soava mesmo estranho que um Presidente da República, ultrapassando a relevância e urgência requeridas na edição da MP, se ocupasse pessoalmente da demanda territorial do nosso estádio.
Ao contrário, o objetivo da lei é, antes de tudo, regular a gestão e alienação de alguns bens pertencentes à União, notadamente aqueles oriundos da extinta Rede Ferroviária Federal RFFSA e do Regime Geral da Previdência social (INSS).
Confesso que minha primeira impressão acerca da MP foi a de que ela era mesmo inconstitucional, afinal como justificar a urgência da regularização da posse da Vila Capanema, prescindindo do devido processo legislativo, se tal discussão já se arrasta por longos 30 anos? E arguissem sua inconstitucionalidade depois de reconstruído o novo estádio, já que o STF já afirmou que a lei de conversão não convalida os vícios existentes na MP? Com efeito, tais preocupações fizeram parte dos meus últimos meses. Mas não me ocuparei desse aspecto neste artigo, podendo fazê-lo futuramente, se houver interesse do leitor.
Assim, sem entrar na discussão de eventual alegação de inconstitucionalidade formal da Lei n. 13.813/2019, pretendo neste artigo analisar alguns aspectos práticos em torno da possível interpretação de alguns dispositivos da lei que concede a posse da Vila Capanema ao Paraná Clube.
Mas, antes disso, quero explicar porque é tão importante à União se desfazer de tais bens, ou melhor, transformá-los em receita. Inicialmente, é oportuno observar que a natureza jurídica da extinta RFFSA era de sociedade de economia mista e, como tal, não gozava de imunidade tributária, de forma que a Rede (em seu extenso patrimônio) possuía dívidas astronômicas de IPTU antes de ser incorporada pela União. É de se esclarecer, ainda, que a União sofreu importante derrota judicial no ano passado quando o Supremo Tribunal Federal entendeu que a imunidade de que goza a União (é que, em direito tributário, a imunidade recíproca veda que o Município cobre IPTU de bens da União) não tem o condão de afastar a dívida consolidada à época, de forma que cabe à União o pagamento de todo o passivo tributário dos imóveis que pertenceram à Rede.
Ora, não é novidade para ninguém que o Estado, de há muito, vem sofrendo grave crise econômico-financeira em suas contas; de outro ângulo, o atual Ministro da economia já anunciou que vai vender o patrimônio da União para fazer frente às despesas correntes. E esta foi a minha segunda impressão sobre a lei: a de que ela era, em verdade, um instrumento à disposição do executivo para dispor dos bens públicos e conseguir recursos.
Assim, antes de mais nada, a União pretende alienar seus bens; aliás, não é sem sentido que, paralelamente, foi publicada a Lei 13.465/2017 que “institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União”.
Vou me estender um pouquinho na minha segunda impressão, analisando alguns fastidiosos aspectos administrativos e, desde já, peço desculpas.
É sabido que no Brasil é muito consolidada a ideia de que os bens públicos são imprescritíveis, não estando sujeitos, portanto, à prescrição aquisitiva por usucapião.
A Vila, dentro da classificação de bens públicos, é considerada um bem dominical (ou dominial) da União, já que se trata de um bem privado e não afetado ou, dito de outra forma, não destinado ao interesse público; ou seja, a administração pública não o está utilizando, está deixando-o apenas para especulação imobiliária. Bem por isso, os bens dominicais são alienáveis, porém imprescritíveis e impenhoráveis, como os outros bens públicos, de uso comum do povo (como as praças) e de uso especial (como os hospitais públicos, por exemplo).
Dentro da Lei n. 8666 encontram-se as regras para alienação dos bens públicos não afetados, terrenos ociosos sem uma destinação específica, sem finalidade pública.
Assim, em tese, é perfeitamente possível a alienação de bem público, desde que observados os requisitos do art. 17 da Lei 8.666: interesse público, avaliação prévia (feita pela administração), autorização legislativa e licitação na modalidade de concorrência, que é mais ampla e complexa.
É o que deve pretender, inicialmente, a Secretaria de Patrimônio da União (do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão), responsável pelos termos, não só com relação ao Paraná Clube, mas com todos os ocupantes dos imóveis então pertencentes à Rede e ao Fundo do RGPS.
É importante observar que no caso da Vila não haverá necessidade de licitação, tampouco na modalidade de concorrência, isso porque a própria Lei 13.813/2019 dispensa o procedimento licitatório para os imóveis ocupados por entidades desportivas, conforme estabelece seu art. 3º, que altera a Lei 9.636/98, especificamente, neste ponto, o art. 18-B.
De outra banda, a L. 13.813 alterou outros dispositivos daquele diploma legal, a exemplo do art. 13, que assegura o direito de preferência ao Tricolor na compra do imóvel. Além disso, prevê ao adquirente, no novel art. 16-D, um desconto de 25 por cento para pagamento à vista.
E seria interessante a União alienar a Vila ao Paraná? Em verdade, em tese, é possível, já que da lei já dispomos. Fico me perguntando: e se comprássemos o imóvel, pagando um preço justo, considerada a posse de 70 anos, evidentemente? A Vila seria, enfim, nossa! Em contrapartida, poderia ser penhorada e alienada ao sabor da necessidade.
Frustrada a possibilidade de alienação, de vez que possivelmente faltará budget ao Paraná, resta, alternativamente, regular o uso do imóvel por meio da utilização especial privativa de bem público, o que pode se dar por autorização, permissão ou concessão de uso, mas também por meio dos instrumentos do direito privado, como contrato de locação e contrato de arrendamento.
Minha terceira impressão foi a de que o art. 3º da MP e também da Lei (que altera a Lei 9636/98), especialmente no tocante ao par. 3º, do artigo 18-B, era uma faca de dois gumes cravada ao lado de um tiro no nosso pé; isso porque – até então eu pensava que havíamos conseguido a edição da MP – referido parágrafo estabelece que “§ 3º As entidades desportivas de que trata este artigo receberão desconto de cinquenta por cento sobre os débitos inadimplidos relativos a preços públicos pelo uso privativo de área da União quanto ao período que antecedeu a data de formalização do termo ou do contrato”, o que pode dar margem a interpretações casuísticas.
Entendo, contudo, que tal dispositivo não pode ser aplicável ao Paraná Clube, a uma porque a lei de referência diz respeito aos imóveis pertencentes ao INSS e a duas porque o preço público pressupõe a existência de um prévio contrato entre a administração e o particular, no qual restasse estabelecido tal valor, o que inexistiu na espécie.
E neste ponto, chego à minha quarta impressão.
Analisando os instrumentos de direito administrativo, tem-se que tanto a autorização quanto à permissão não seriam prestadias para regular a posse da Vila, pois que são atos unilaterais da administração pública, discricionários (de acordo com a oportunidade e conveniência) e precários (podendo ser desfeitos a qualquer tempo, sem dever de indenizar).
No caso da Vila Capanema, portanto, – por envolver um alto investimento no caso de reestruturação do estádio e, portanto, risco na descontinuidade da concessão – o investimento exige a segurança da Concessão de Uso, a qual se efetiva via contrato administrativo.
E, neste aspecto, quero tratar de duas características inerentes a todos os contratos administrativos. A primeira é a onerosidade; ou seja, a sonhada “posse tranquila” da Vila Capanema não será gratuita e isso fica claro em diversos dispositivos da Lei n. 13.813/2019. E tem gente por aí que acha que a Vila vai sair de graça. E a segunda é que os contratos administrativos devem ter tempo determinado, no nosso caso “pelo prazo máximo de 30 (trinta) anos, admitidas prorrogações por iguais períodos”.
Além disso, nos contratos típicos, o Estado (no caso, a União) tem prerrogativas decorrentes da supremacia do interesse público sobre o interesse particular, ao que chamamos cláusulas exorbitantes (art. 58, da Lei n. 8666/93), tais como: modificar e rescindir o contrato unilateralmente, fiscalizar e aplicar sanções ao contratado. Lembrando que o particular (PRC) nunca tem poder de fazer nada unilateralmente e, em caso de descumprimento de alguma condição do contrato, a administração pública poderá rescindir unilateralmente o contrato, além de poder exigir garantia.
Todavia, a Lei n. 13.813/2019 inovou ao apresentar um novo instituto ao que denominou “cessão em condições especiais”. Tecnicamente o termo cessão é incorreto para a finalidade a que se propõe, sendo prestadio para os casos em que há transferência de bem público de um órgão a outro órgão, também da administração pública.
Como já anunciado pela Diretoria, a posse mansa e pacífica do Durival Britto e Silva vai depender da negociação com a Secretaria de Patrimônio da União. E, acerca disso, embora a Fazenda Pública não possa dispor sobre o direito em si, pode fazer autocomposição quanto à forma de cumprimento.
Outro aspecto burocrático e operacional é que tal acordo deve ser celebrado até 31 de dezembro de 2019, conforme o novo parágrafo 4º, do art. 18-B, da L. 9636/98 (acrescentado pelo art. 3º da L. 13.813/2019).
Outra particularidade a ser considerada na depreciação do valor é que sequer a Vila Capanema poderia ser desapropriada pela Municipalidade, já que, consoante o regime jurídico dos bens públicos, as regras para desapropriação destes obedecem uma hierarquia dos entes federados. Assim, a União pode desapropriar um terreno do município, mas o inverso não é possível.
Outro ponto a ser lembrado é que estes bens públicos não tiveram qualquer custo à sociedade, já que advieram, em sua origem, de terras devolutas. E o que isso significa? A partir do fim das capitanias hereditárias, as pessoas saíram se apropriando das terras, mas algumas áreas não despertaram o interesse de ninguém, as quais foram chamadas de terras devolutas. O Estado, então, se apropriou delas, mas com o passar do tempo demarcou apenas algumas, as quais, descriminadas e demarcadas, perdem a característica de terra devoluta e passam a ser terra pública, bem público, como é o caso do imóvel onde se situa a Vila Capanema.
Lembrando que os bens públicos são insuscetíveis à penhora, a boa notícia, também, é que estaremos muito bem representados na tratativa com a Secretaria de Patrimônio da União; na pessoa do insigne jurista Luiz Guilherme Marinoni e do Dr. Márcio Augusto Nóbrega, que sempre atuou de forma aguerrida ao lado de seu pai nas demandas que travamos pela posse justa e merecida do nosso estádio, inaugurado no longínquo 23 de janeiro de 1947.
Cristiane Fernandes
*Nota: O conteúdo postado neste espaço (colunas) é de responsabilidade exclusiva do autor, não necessariamente refletindo a opinião da Paranautas sobre os temas aqui abordados.
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